segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Transcrições


"...ela tocou o muro com sua conhecida varinha branca, o porão horrível desapareceu por completo, e nós nos encontrávamos agora numa pista lisa, aberta e estreita de gelo ou vidro. Flutuávamos como sobre maravilhosos patins, e dançávamos também, porque a pista abaixo de nós subia e descia como uma onda. Era deslumbrante. Eu nunca tinha visto nada igual e, de pura alegria, exclamei: "Que magnífico!". E, sobre nós, estrelas cintilavam num céu de um estranho azul pálido, mas escuro, e a lua, com seu olhar fixo, lançava luz sobrenatural sobre os patinadores. "Isto é a liberdade", disse a mestra. "Ela é invernal, não se pode suportá-la por muito tempo. Precisamos nos movimentar sem cessar, como estamos fazendo, precisamos dançar na liberdade. Ela é gélida e bonita. Só não se apaixone por ela. Isso traria apenas tristeza, porque só conseguimos nos deter por alguns intantes, nada mais que isso, nos domínios da liberdade. Aliás, acabou-se o nosso tempo. Veja como esta pista maravilhosa em que flutuamos vai se desfazendo pouco a pouco. Agora, se abrir os olhos, você vai poder assisir à morte da liberdade. Em sua vida futura você ainda testemunhará muitas vezes esta visão angustiante. (...) E, mal ela terminara de falar, descemos das alturas e das alegrias a que ascendêramos rumo ao cansaço e à domesticidade, a uma alcova pequena e tranquila, plena de refinados confortos, exalando um perfume delicioso de devaneios e recoberta de fartas tapeçarias que exibiam cenas e quadros lascivos. Era, de fato, um aposento repousante. Muitas vezes já sonhara com alcovas de verdade. E agora era onde me encontrava. (...) "Aqui" disse a senhorita, "você pode descansar". Decida você mesmo por quanto tempo." (...) Está ouvindo o retumbar dos trovões? É o infortúnio. Você desfrutou do afortunado repouso deste aposento. Agora, o infortúnio vai se precipitar sobre você, e a dúvida e o desassosego vão encharcá-lo. Venha. É precisso ter a coragem de mergulhar no inevitável." Assim, se pronunciou a professora e, mal tinha acabo de falar, já eu nadava numa espessa e desagradável torrente de dúvidas." (Jakob Von Gunten um diário - Robert Walser)

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