domingo, 30 de outubro de 2011

Transcrições



"Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
A vida não para...

Enquanto o tempo
Acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora
Vou na valsa
A vida é tão rara...

Enquanto todo mundo
Espera a cura do mal
E a loucura finge
Que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência...

O mundo vai girando
Cada vez mais veloz
A gente espera do mundo
E o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência...

Será que é tempo
Que lhe falta para perceber?
Será que temos esse tempo
Para perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara
Tão rara..."
(Paciência - Lenine)

sábado, 22 de outubro de 2011

Foi na forte chuva que resolvi sair





Foi durante uma tempestade que ele resolveu sair pela rua. A chuva e o vento eram tão fortes que o faziam andar forçando para se deslocar. Era uma noite vazia. Não tinha pressa, pois tinha se acostumado com o temporal. Sabia que não tardava em passar como sempre acontece. O carregar do guarda-chuva era um pouco dificultoso. Estava indo comprar seu jantar porque prepará-lo sozinho em meio a uma noite chuvosa já não lhe agradava, embora soubesse cozinhar bem. Tinha pouca fome, mas estava com sede em meio a uma torrente de toneladas de água que caia sem parar. Chegou na esquina da envelhecida rua que terminava tangencialmente em uma rua maior. Parou para se lembrar qual direção o restaurante ficava. Decidiu qual caminho tomar, só que restou dentro de si, porém, um viés de insegurança pela decisão que o incomodava. Acalmou-se por lembrar que nos dois lados da rua haviam restaurantes. Só que em um dos caminhos havia um em que o tipo de comida, embora boa, não lhe iria agradar no momento. Não estava disposto a comer em um lugar que não pretendia. Momentaneamente ficou feliz em saber que também tinha uma opção na direção errada e isso o impulsionou a seguir caminho.

Ao andar pela direção escolhida, não conseguia pensar muita coisa, mas julgou-se merecedor da melhor opção de restaurante para si, afinal ele era um dos poucos corajosos que ousaram sair na rua em meio à forte tempestade fria que se mantinha constante na noite. No caminhar, lembrou-se de uma boa receita que recebera de uma amiga e que poderia ter preparado em casa. Não era um de seus pratos prediletos, mas iria poupá-lo de caminhar nessa insegurança em uma forte tempestade. Fiz a escolha certa, suspirou. Se sentiu feliz por não ter ficado entediado em casa preparando sua receita quase-boa. Aprendeu a gostar da chuva, dos ventos e da noite. Via algo de mágico e bonito naquilo tudo. Que aliviante saber que temos temporais como esse às vezes pensou.
Durante seu devaneio, um gato surgiu do nada e, de supetão, passou por entre suas pernas, fazendo com que rapidamente voltasse para a realidade, sentindo o aumento das batidas de seu coração no ouvido. Um belo susto suspirou. O acontecimento o fez lembrar que é bom ficar atento ao andar sozinho à essa hora da noite nessas circunstâncias.

O molhado da forte chuva já o alcançava para mais dos joelhos quando então pôde ver. O letreiro amarelo embaçado pela chuva não negava. Escolhera o caminho errado da rua. O tradicional restaurante passou a ser sua única opção viável. Foi para isso que saí do quente aconchego do meu lar, desabafou. Para comer em um lugar quase-bom e, ainda por cima, ter que pagar por isso. Se julgou culpado por tudo isso e botou a culpa no mundo.

Ao adentrar no local, aceitou sua condição e não estava mais disposto a esperar nada de bom. Os garçons o atenderam prontamente. Pediu então um prato que não conhecia, mas que tinha uma foto bonita. Não acreditou que seria melhor do que o que pediria no restaurante que gostaria de estar agora. Comeu rapidamente sem apreciar muito seu paladar que fora cuidadosamente preparado. E bebeu sedento um suco revigorante que escolhera aleatoriamente. Por ironia do destino até que o prato estava inesperadamente delicioso. Não queria estar mais ali. Seria atentar contra si mesmo reconhecer que aquele restaurante fez valer toda sofrida caminhada na chuva. Pagou a cara conta e se retirou do local.

Ao sair, percebeu que a chuva havia cessado. As ruas estavam desertas e ainda com cheiro de chuva. Pode então rapidamente voltar para sua casa carregando consigo apenas o inconformismo. Enfim de volta ao lar. Tomou banho, vestiu roupas limpas e quentes. Não queria mais pensar em nada. Ligou a TV para relaxar e fugir da vida sem consideração que possuía. O noticiário que não assistia há 3 dias clamava as principais notícias. “Restaurante italiano da Rua 6 de maio continua interditado pela vigilância sanitária”. Como eu gosto de comida italiana, suspirou aliviado, que bom que comi um ótimo macarrão com um ótimo tempero essa noite, ficou feliz.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Brinque com o novo


De uns tempos para cá, tenho observado que as pessoas, na medida em que envelhecem, se tornam cada vez mais individualistas e fechadas para o novo. Uma criança é o ser mais curioso e antenado para as coisas boas e ruins que existe. O desejo de aprender é grande, a sede de conhecer pessoas, assuntos novos, o significado e o porquê das coisas que a cercam. Um adolescente continua nessa linha, mas já cria seus próprios preconceitos, se fechando, aos poucos, desde já, para assuntos que julga não serem bons. Um julgamento nessa fase é, quase sempre, precipitado. Entretanto, a abertura para conhecer novas pessoas e idéias continua frutífera na cabeça do jovem. Ao adentrar na fase adulta, se inicia a consolidação em nossas cabeças de preconceitos que, na medida que se passam os anos, se tornam cada vez mais inquestionáveis e inflexíveis para nós. É difícil convencer uma pessoa com mais de 30 anos a mudar sua opinião sobre determinada coisa. A intolerância cresce com a idade física. Assumir que se está errado parece que é um golpe no orgulho próprio. Perdemos a habilidade de nos auto-questionar. As pessoas, nessa fase, em geral se fecham para o mundo e procuram novas pessoas apenas por interesse profissional, sexual, seja qual for. Difícil se construir novas amizades verdadeiras nessa época, talvez por isso que as que construímos quando criança sejam as mais valiosas da vida.

Nessa fase adulta, grande parte das pessoas se foca na construção de uma nova família. A recém formada família proporciona tudo o que uma pessoa espera do contato com outras. Momentos de alegria, sexo, um ambiente pra se reinar, um porquê palpável de se viver. Nesse contexto, a dispensa à sede de conhecer assuntos, idéias e pessoas novas é destruída e substituída por um estado de estagnação social. Daí para frente se vive com tudo que foi engessado na cabeça desde o início do gradual fechamento. Perdemos a habilidade de nos reinventar. Com os filhos ainda infantis, tentamos passar para eles toda a estagnação mental que durante alguns anos jaz engessada de forma inflexível em nossa mente. Esses filhos, na medida em que crescem, rapidamente percebem que talvez seus pais estejam sendo, sob alguns aspectos, ultrapassados e conservadores em relação à sociedade que os cerca, o que acaba gerando uma semente de anseio por liberdade, um anseio de sair de uma convivência defasada e constituir sua própria família. A motivação não é diferente da que moveu seus pais. Assim o ciclo continua e se repete há anos na sociedade.

Deveríamos conservar os anseios de uma criança o máximo de tempo possível em nossa vida. Deveríamos manter nossa mente aberta para sempre. Os benefícios seriam grandes em todos os aspectos. Talvez assim a velhice nunca atingisse nossa alma, ou no mínimo demoraria bem mais. As relações pessoais seriam mais verdadeiras e felizes, e não apenas um meio para a consecução de objetivos. Não há nada mais valioso e raro do que uma mente aberta aos 50 anos de idade. Teríamos profissionais mais atualizados com os verdadeiros anseios sociais do presente independente da idade, e não mais peças inflexíveis e fechadas ao novo. A vida seria melhor na medida em que os anos passassem, deixaríamos, então, de olhar para a infância com vontade de voltar no tempo e, logo, passaríamos então a encará-la como uma fase inicial de uma existência que cresce e evolui sem perder sua essência.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A beleza do caos



É fácil perceber que a vida humana é cercada de um emaranhado complexo de circunstâncias desordenadas que compõem o que é comumente chamado de caos. Desorganização, eventos inesperados, atitudes sem sentido, situações que, de maneira geral, fogem à normalidade e à previsibilidade. Não é difícil perceber fatos dessa natureza em qualquer lugar que se olhe, seja nos dias atuais, ou em qualquer momento histórico.

Em tentativas frustradas, o homem cria mecanismos organizacionais visando eliminar a existência do caos, mas é certo que nenhum desses mecanismos alcançará a perfeição com sua total aniquilação. Com o tempo é perceptível que todos esses mecanismos aparentemente já nascem com os germes de seu fracasso. Dentre esses mecanismos, a título de exemplo temos desde as leis vigentes punindo atitudes de caos com sanções, até a tentativa de se organizar uma festa para que tudo dê certo. O esforço de todos é feito para evitá-lo. No entanto, é ele uma clara tendência social inevitável, tão constante que não aceitá-lo é se frustrar com algo que sempre existirá independente do que se faça.

A velocidade da variação de pensamentos, de criação de idéias e complexidade mental das pessoas é tão grande que não há jamais nenhum mecanismo capaz de estar intimamente pronto para prever toda e qualquer tendência ao caos proveniente das pessoas, ainda que pequena. Além do que, as mentes humanas, apesar de seus pontos coincidentes, são tão diferentes que, tentar encará-las de maneira homogênea a fim de prever suas atitudes é algo tão risível quanto utópico, ainda que entre gêmeos de uma mesma criação.

No que tange aos eventos naturais, estamos tão longe de ter um controle razoável da previsibilidade dos fatos e circunstâncias da natureza, que se já é difícil se acertar com a previsão do tempo de daqui a uma semana, que dirá saber o que nos espera em um universo em que somos apenas um grão de areia.

Junta-se ainda o fato inegável de que, tanto os seres humanos quanto a natureza estão em uma mutação evolucional diária, corroborando para um mecanismo perfeito como se quisessem evitar que um dia o caos pudesse ser destruído. A luta humana para sua dissolução é tão eficaz quanto a luta que duas retas paralelas travam para se tocarem.  

O que não se percebe é que o caos é tão essencial quanto às tentativas humanas de afastá-lo. São coisas reciprocamente interligadas e dependentes uma das outras formando um perfeito equilíbrio. Sem o caos como forma constante, não haveria porque o ser humano se preocupar com aspectos que conduzem à sua evolução. Um mundo sem caos é um mundo estagnado. As grandes invenções só foram criadas devido à luta humana contra o caos. O caos de se locomover no escuro gerou a lâmpada; o caos de se viajar em uma demorada viagem a cavalo levou ao carro, etc. O caos move o mundo e sua função é tão essencial quanto sua beleza...
                 

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Transcrições


"...ela tocou o muro com sua conhecida varinha branca, o porão horrível desapareceu por completo, e nós nos encontrávamos agora numa pista lisa, aberta e estreita de gelo ou vidro. Flutuávamos como sobre maravilhosos patins, e dançávamos também, porque a pista abaixo de nós subia e descia como uma onda. Era deslumbrante. Eu nunca tinha visto nada igual e, de pura alegria, exclamei: "Que magnífico!". E, sobre nós, estrelas cintilavam num céu de um estranho azul pálido, mas escuro, e a lua, com seu olhar fixo, lançava luz sobrenatural sobre os patinadores. "Isto é a liberdade", disse a mestra. "Ela é invernal, não se pode suportá-la por muito tempo. Precisamos nos movimentar sem cessar, como estamos fazendo, precisamos dançar na liberdade. Ela é gélida e bonita. Só não se apaixone por ela. Isso traria apenas tristeza, porque só conseguimos nos deter por alguns intantes, nada mais que isso, nos domínios da liberdade. Aliás, acabou-se o nosso tempo. Veja como esta pista maravilhosa em que flutuamos vai se desfazendo pouco a pouco. Agora, se abrir os olhos, você vai poder assisir à morte da liberdade. Em sua vida futura você ainda testemunhará muitas vezes esta visão angustiante. (...) E, mal ela terminara de falar, descemos das alturas e das alegrias a que ascendêramos rumo ao cansaço e à domesticidade, a uma alcova pequena e tranquila, plena de refinados confortos, exalando um perfume delicioso de devaneios e recoberta de fartas tapeçarias que exibiam cenas e quadros lascivos. Era, de fato, um aposento repousante. Muitas vezes já sonhara com alcovas de verdade. E agora era onde me encontrava. (...) "Aqui" disse a senhorita, "você pode descansar". Decida você mesmo por quanto tempo." (...) Está ouvindo o retumbar dos trovões? É o infortúnio. Você desfrutou do afortunado repouso deste aposento. Agora, o infortúnio vai se precipitar sobre você, e a dúvida e o desassosego vão encharcá-lo. Venha. É precisso ter a coragem de mergulhar no inevitável." Assim, se pronunciou a professora e, mal tinha acabo de falar, já eu nadava numa espessa e desagradável torrente de dúvidas." (Jakob Von Gunten um diário - Robert Walser)